NA PELE DE UM SDF

NINGUÉM ME OLHA

Estou aqui, sentado num banco ou no chão, estendo a mão, e os transeuntes passam como se eu não existisse. É completamente estúpido. O pior é que nem sequer o fazem de propósito. É raríssimo que alguém me fale e ainda mais que alguém me sorria. A maior parte daqueles que me falam é para me dizerem qualquer coisa do género: «Procure trabalho em vez de ficar na rua!». Mas quando lhes peço para mo darem, já não sabem o que dizer. Nem sequer falo daqueles que me olham com um grande desprezo nos olhos. Eles não se dão conta de que se tivessem tido menos sorte, talvez fossem eles que estariam no meu lugar! Estou farto disto, não posso mais. Deveria arranjar um rafeiro sem pêlo nenhum e estou certo de que me dariam mais guito: para o cão, não para mim. E depois, isso toca o coração, mas eu amo demasiado esses animais para obrigar um a dormir de fora.
É verdade que encontro uma multidão de idiotas que se estão marimbando completamente para o que me possa acontecer, que nem se voltariam se eu estivesse meio morto sobre o passeio. Mas também encontro pessoas que me querem ajudar. Querem, mas não sabem. Tentam muitas vezes obrigar-me a pensar como elas ou a parecer-me com elas. Não tenho vontade de me parecer com elas, mesmo que sejam simpáticas. Não é disso que eu preciso. Preciso que me olhem como um homem. Preciso que me dêem um dia o que nunca tive em minha casa quando era miúdo. Esse amor, aqueles que o tiveram não o sabem reconhecer. Eu não o tive e tenho necessidade que mo dêem, generosamente, sem procurar compreender. Porque é normal ser amado. Porque a vida, não é a rua, não é a dor e a fome, não é a indiferença e o egoísmo. A vida é o amor!

Okapi, Novembro de 1998
(Tradução pelos alunos do 10.º A)

A sigla SDF (Sans Domicile Fixe) reportava-se àqueles que, não podendo pagar aluguer, pernoitavam em alojamentos colectivos, destinados a acolher os mais necessitados durante a noite. Diferenciava-se, portanto, da designação “Sans abris” (Sem abrigo) referente aos que dormiam na rua. Contudo, actualmente, SDF integra ambas as situações mencionadas.

This Post Has One Comment

  1. Pedrinho Nascimento da Silva

    A linguagem e a sensibilidade que abordam este tema são fantásticas. Uma construção daquilo que vemos diariamente em nossas cidadelas, em nossas escadas, nas ruas e nas praças. Gente que no interior de muitos não passam de bichos que povoam nossa miserável imaginação. Não paramos pra lhe dá atenção, temos medo, receio ou talvez culpa. Culpa de amor, de gesto, de ação e de favor. O mundo precisa mudar, nós precisamos mudar e são com esses primeiros gestos que transformamos e recriamos esse mundo e esse sentimento que é o amor.

    Parabéns ao autor do texto.
    Prof. Pedrinho Nascimento da Silva.
    Língua Portuguesa

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